Utopia: sonho ou pesadelo?

19 maio, 2019

O evolução não é senão a realização das utopias. O escritor britânico Oscar Wilde, por meio de sua frase, expressa a ideia concebida da utopia como ferramenta primordial para o desenvolvimento humano e construção de maneiras distintas de se viver e se organizar em sociedade, baseando-se na idealização de uma realidade inexistente como ponto de partida em direção ao futuro promissor. O escritor tcheco Franz Kafka, em contrapartida, mostra mentalidade divergente: acredita que crer-se no progresso não significa que, de fato, já tenha tido lugar qualquer progresso no mundo. É possível, assim, Kafka e Wilde referirem-se a mesma utopia, tendo ideias tão contraditórias entre si?

Em 1919, um alemão chamado Adolf Hitler ascendia em uma Alemanha destruída pela crise. Assim como Martin Luther King, ele possuía um sonho: instaurar em sua pátria o Império Ariano Europeu, sendo tal utopia de Hitler o que moveu uma nação inteira a acreditar em um novo futuro, a primeiras vistas, improvável. Entoando o hino alemão, desembainharam do cinto ideais alheios e rasgaram história, que sangra até hoje, pelas veias dos injustiçados e das vítimas de um discurso maior.

A ferida deixa cicatrizes que saltam aos olhos: instaurou-se das atrocidades a eterna lembrança de como nossa animalidade instintiva pode ser atiçada quando proferido um bom discurso, sobre um grande sonho, de algo ainda impossível.

Perguntamo-nos, então, se a utopia não seria a enfermidade do mundo. O mundo está doente, decerto, e pela pandemia que nos acomete tendemos a nos destruir, sem nunca nos eliminarmos. Contudo, não culpemos os sonhos pela transmutação de nosso mundo em um pesadelo. É na embriaguez, no arrebatamento de nós mesmos e a evasão do sonho para torná-lo, assim, algo que já não o era no momento de seu nascimento, quando o concebíamos em nossa abstrata imaginação: torna-se o mal que nos condena à ignorância e às repetições.

Tal como Victor Frankestein, do romance de Mary Shelley, que sonhava em dar vida à algo inanimado, seguimos nesse mundo: um ideal impossível que nos enlaça e seduz, até nos causar tanto horror que acabamos por amaldiçoar a própria criação. O monstro de Frankenstein, que se assemelha à utopias diárias dos homens, nada tem com nossas fraquezas internas.

Todavia, tudo o que é inédito e nunca fora pensado é, consequentemente, utópico. Ora, mas a história não é embalada por juízos fantasiosos de coisas inexistentes? Não é pela ânsia por mudança que peregrinamos pela estrada da civilização? Será por essa mesma utopia que é natural de nossa espécie que, doravante, o século XXII será diferente do que o que vivemos, e assim por diante? A utopia nos mata mas, ao mesmo tempo, é o que nos faz caminhar.

Partindo da premissa de uma coexistência entre as duas realidades aparentemente disparatadas, a discussão acerca da finalidade a qual a utopia encaixa-se nesse mundo é, por si só, instrumento poderoso para a compreensão de nossas relações. Como Freud já pronunciara, o sonho é a satisfação de que o desejo se realize. Somos parte de todos os desejos realizados que, um dia, já foram sonhados. Como poderíamos, então, condenar o sonho, essa tão importante maneira de existir?

 

Ana Laura Marins

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MAUS, de Art SpiegelmanWe are all adapting ourselves

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